26.1.10

 
"Mendigos serão sempre necessários*"


Juntou o que sobrou e não levou nada.
Mal conseguia levar-se a si.
E, se conseguisse, pra onde? Talvez ali naquele beco. Não sabia se havia ordem naquilo que era a mais pura desordem. Resolver sentar e esperar a reação deles. Depois de olharem três segundos, nada. Indiferença igual entre todos. Ele era só mais um ninguém. Permissão não precisava. Enfim, uma família sem protocolos. Não comemoraram nem reclamaram. Como o nada não se divide, não fica menor e nem acaba. Ao contrário, parece que vai aumentando. Sensação de ter cada vez mais um vazio que invade as ruas e ele próprio, apagando a memória daquilo que foi e das coisas que possuiu. Apagando-o lentamente. Nota que perdeu até o RG. Não tinha se preparado pra isso. O destino não dá aviso prévio.
Ouve um barulho e vê que já não é o último novato. Percebe-se retribuindo a mesma indiferença que recebera. Igual.
O nada não se divide, embora tenha cada vez mais adeptos.


* Bertolt Brecht.

19.1.10

 
A construção da destruição

“...esfalfado arfar sobre o asfalto
falto de ar...”
Mário Chamie


Não há caminho, não. E, pros que desistem do descaminho, também não há desistência. Eles apagam as pegadas e tudo mais que possa significar algum passado. “Se não há futuro, pra que passado?”, dizem presentemente ausentes. Talvez estejam certos e nós, errados de novo. Voltar é impossível. Os que teimam em não continuar a descontinuação ficam aí jogados. Quede vala que os valham? Muitos mutuamente mutuando-se à morte. Cena desnecessária. Como tudo aqui. Pelo menos não precisam se preocupar com seus pertences, que não há. O que destinham foi-se. É, o não predomina aqui. Se houves(s)e “se” a gente até poderia tentar. Mas quando? E pra quê? Deixam não. Não sobraram nem as sobras. E nossas sombras foram embora.

12.1.10

 
20 anos depois


No rosto, as marcas do tempo só não lhe chamavam mais a atenção do que os olhos, que pareciam refletir a frase: “é, sei que envelheci”.

Seguida por outras que não costumava ouvir (o que seria da educação sem a falsidade?), mas certamente acostumou-se a adivinhar: “nossa, como você mudou”; “acho que não lhe reconheceria mais”. Todas diferentes, mas lembrando a mesma coisa (sim, eu envelheci).

O assunto muda e continua: não casou; não teve filhos; namorou quatro ou cinco vezes (foram melhores do que eu? Fizeram-lhe mais feliz?). Tudo orbitando eternamente no macrocósmico assunto “o tempo passou”.

Começam a conversar sobre o que foi (naquela época juraram que seria pra sempre) e o que poderia ter sido (quantos filhos teriam, onde morariam...).

No final, após não reconhecer a imagem que guardou (sonhou?) na memória, um “vamos marcar alguma coisa” tão esquálido quanto o desejo de nunca mais receber essa visita do tempo.

6.1.10

 
Essa doença II


Essa doença é assim; a gente fica sem ânimo pra nada. Tô aqui, ó, só Deus sabe. Comendo a pulso. Preciso engolir alguma coisa. O novo remédio me deu gastura. Essa médica parece melhorzinha. Aquela nem aguentava mais me ver. Quando cheguei, vi que até fez um sinal pra outra. Disse que já tinha me passado todos os remédios. Que não dou certo com nenhum. A nova mandou eu tomar o antigo com metade do novo por seis dias. Ou era o novo com metade do antigo? Agora tá uma confusão na minha cabeça. Quando não durmo não sou nada. Essa cruz tá muito difícil de carregar. Semana que vem consegui um encaixe com outra. Com aquela só tinha pra fevereiro. Acho que o novo não tá fazendo efeito. PARAR??? Quem é você pra falar pra eu parar? Fez medicina? Só os médicos sabem. E todos falaram que não posso ficar sem remédio. Sem remédio fico muito pior. Só Jesus sabe. Mas um dia você vai saber também. Não desejo isso pra ninguém. Minha vida é só problema. Será que consigo um encaixe pra hoje?

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